Hoje publicamos artigo da lavra do Dr. Francisco Antônio Bonifácio Guzzo Neto, advogado, pós-graduado pela Fundação Getúlio Vargas, sócio do escritório Alvares, Costa e Guzzo Advogados, que aborda um tema que há muito foi objeto de estudo por esta articulista sob o título "A Fazenda Pública tem privilégios ou prerrogativas processuais? Análise à luz do princípio da isonomia".
O estudo realizado pelo Dr. Francisco Guzzo Neto vem ao encontro das conclusões a que chegamos naquela oportunidade, além de conferir atualidade ao tema sob o escopo da ótica contemporânea do princípio da suprema do interesse público.
Boa leitura!
Processo de Execução de Quantia Contra a Fazenda
Pública no Novo Código de Processo Civil Sob a Ótica Contemporânea do Princípio
da Supremacia do Interesse Público
Francisco Antônio Bonifácio Guzzo Neto
INTRODUÇÃO
A presença marcante do
Poder Judiciário no cenário político tem instigado o cidadão comum a buscar
entendimento acerca das prerrogativas processuais a que têm jus a Fazenda
Pública sob o escopo dos seus fundamentos, daí o interesse no estudo das regras
especiais que conferem legitimidade à existência dessas prerrogativas, em
específico, a que assegura um processo especial de execução de quantia contra a
Fazenda Pública.
Sob tal contexto,
buscou-se, em primeiro lugar, a abrangência do conceito de Fazenda Pública,
haja vista que, em sede processual, nem todas as pessoas jurídicas integrantes
da Administração Pública são abrangidas pela definição, fato que demandou
trazer à lume o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema,
conferindo atualidade à matéria.
Ato contínuo, observou-se
que o tema “Fazenda Pública em juízo” ganhou certa autonomia em sede
doutrinária, tanto que Carlos Ari Sundfeld emprega a terminologia “Direito
Processual Público” para se referir “à parte especial do Direito Processual que
regula os processos judiciais que tenham ou como objeto o Direito Público ou
como parte a Administração Pública”[1], o que impôs um olhar mais abrangente sobre o
sistema, ao tempo em que viabilizou expor, com maior compreensão, o enfoque
eleito como objeto do estudo.
Em conjunto com a
avaliação doutrinária, vislumbrou-se que os debates recentes travados junto ao
Supremo Tribunal Federal traziam posicionamentos críticos acerca dos
fundamentos que legitimam a prerrogativa processual assente na execução
judicial contra a Fazenda Pública, fato que teve o condão de enriquecer o
escopo de trabalho e proporcionar o desdobramento de sua estrutura em três
pontos de desenvolvimento.
O primeiro ponto explora
o conceito de Fazenda Pública e sua abrangência, passando pelo seu atrelamento
com a definição de Administração Pública, bem como com a construção
jurisprudencial acerca do tema.
O segundo ponto esmiúça o
panorama normativo atribuído à Fazenda Pública em juízo no que tange à execução
de sentenças judiciais por quantia certa, trazendo um apanhado histórico da
execução de título judicial e extrajudicial contra a Fazenda, abordando o
regime de precatórios e sua previsão constitucional, além de outras
prerrogativas a ela atribuídas no que se refere à execução em si com vistas a
demonstrar a especificidade do sistema processual que a circunda.
O terceiro ponto traz a
relação intrínseca entre o processo executivo especial, direcionado à Fazenda
Pública enquanto executada e o princípio da supremacia do interesse público,
buscando também contextualizá-lo frente às
críticas apresentadas e oferecendo uma outra perspectiva acerca das concepções
clássicas do princípio, relacionando-o com o universo processual sob o enfoque
constitucional.
A conclusão demonstra a
abertura do tema diante da evolução política da sociedade, onde os valores que
justificam a postura processual de cunho especial em favor da Fazenda Público
no campo da execução de decisões judiciais podem enveredar pela sua
legitimidade ou pela sua ilegitimidade, conforme o escopo conferido aos
direitos fundamentais.
A pretensão final é
demonstrar que, no campo processual, o benefício de execução especial contra a
Fazenda Pública está intrinsecamente vinculado às finalidades públicas buscadas
pelo Estado e, como tal, sujeita às intempéries decorrentes da noção de
interesse público.
CAPÍTULO
I
1
FAZENDA PÚBLICA: A ABRANGÊNCIA DO CONCEITO
O conceito de Fazenda
Pública, embora esteja intrinsecamente vinculado à definição conferida à
Administração Pública em sentido subjetivo, com ela não se confunde.
A definição de
Administração Pública em sentido subjetivo, também intitulado de sentido formal
ou orgânico[2],
compreende as pessoas jurídicas, os órgãos e os agentes públicos que exercem a
função administrativa, enquanto o conceito de Fazenda Pública se restringe,
basicamente, às pessoas jurídicas de direito público, a saber: União, Estado,
Distrito Federal, Municípios, além de suas autarquias e fundações públicas. Em
outras palavras, embora a definição de Administração Pública albergue as
pessoas políticas das três esferas de governo, além das pessoas jurídicas por
eles criadas (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia
mista), seus respectivos órgãos e agentes, o conceito de Fazenda Pública
compreende, apenas, as pessoas jurídicas de direito público, de modo que, como
regra. as sociedades de economia mista e as empresas públicas estão excluídas
desse rol. Essa, inclusive, a conotação emprestada por Marco Antônio Rodrigues,
de onde se extrai os seguintes ensinamentos[3]:
O Estado, em todas as suas esferas
federativas, não possui condições materiais de exercer as atividades que lhe
são típicas. Daí por que a Administração Pública se estrutura tradicionalmente
em direta e indireta. A Administração Pública direta compreende os entes
estatais políticos: União, Estados, Distrito Federal e Municípios, que se
subdividem em órgãos, os quais não possuem personalidade jurídica e atuam como
a própria pessoa jurídica em juízo.
Ademais, pela impossibilidade de
exercício de todas as suas tarefas, a Administração Pública se descentralizou
em indireta, por meio da criação de pessoas jurídicas de direito público que
cumprem atividades estatais, como é o caso das autarquias, das agências
reguladoras – que são autarquias de regime especial – das fundações públicas.
Ademais, foram criadas pessoas de direito privado que prestam serviços públicos
ou exercem atividades econômicas: são as empresas públicas e as sociedades de
economia mista.
No entanto, para fins de aplicação de normas processuais civis, verifica-se no
Código de Processo Civil a menção à Fazenda Pública. Trata-se de todas as pessoas
de direito público componentes da Administração. Isso inclui, portanto, as
autarquias, as agências reguladoras e as fundações de direito público.” (grifo nosso)
Importante ressaltar que
a abrangência do conceito de Fazenda Pública não albergou os Conselhos de
Fiscalização Profissional em que pese o reconhecimento da sua natureza
autárquica pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se depreende do debate
havido no RE nº 938.837, tema nº 877 de Repercussão Geral, em que restou
assentada a seguinte conclusão:
Decisão: O Tribunal, por maioria,
vencido o Ministro Edson Fachin (Relator), apreciando o tema 877 da repercussão
geral, deu provimento ao recurso. Em seguida, o Tribunal fixou a seguinte tese
de repercussão geral, nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio, que
redigirá o acórdão: “Os pagamentos devidos, em razão de pronunciamento
judicial, pelos Conselhos de Fiscalização não se submetem ao regime de
precatórios”. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello e Gilmar
Mendes. Presidiu o julgamento a Ministra Carmen Lúcia. Plenário, 19.4.2017.
Nesse ponto, vale
registrar que por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 1.717-6 restou reconhecida a natureza autárquica dos conselhos
profissionais, advindo, desse reconhecimento, ilação em sentido favorável à
extensão dos benefícios processuais da Fazenda Pública a esses entes. Vale
trazer à lume a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que possibilitou o
entendimento inicial, ipsis verbis:
A jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal encontra-se consolidada
no sentido do reconhecimento da natureza autárquica dos conselhos de
fiscalização profissional, uma vez que desenvolvem atividade típica de Estado,
de modo que se revela inviável, sem a realização do procedimento administrativo
prévio, a dispensa do servidor público concursado. Confiram-se, a propósito, os
seguintes acórdãos:
“EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E
ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS
PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE
FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS.
1. Estando prejudicada a Ação,
quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o
Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada
procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do
"caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58.
2. Isso porque a interpretação
conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e
175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade
típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no
que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como
ocorre com os dispositivos impugnados.
3. Decisão unânime.” (ADI 1717,
Rel. Min. Sydney Sanches, Plenário, DJ 28.3.2003)
“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO. CONSELHO PROFISSIONAL DE FISCALIZAÇÃO.
DISPENSA IMOTIVADA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.
O Supremo Tribunal Federal já
assentou a necessidade de prévio procedimento administrativo para a demissão de
servidor de órgãos de fiscalização profissional, tendo em vista que são entidades dotadas de personalidade jurídica de
direito público. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(RE 683010 AgR, Primeira Turma, Rel. Min.Roberto Barroso, DJe 27.8.2014)
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. CONSELHO DE FISCALIZAÇÃO PROFISSIONAL. AUTARQUIA FEDERAL. SERVIDOR
PÚBLICO CONCURSADO: IMPOSSIBILIDADE DE DISPENSA IMOTIVADA. ESTABILIDADE.
ACÓRDÃO RECORRIDO DISSONANTE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.” (RE 735703 ED, Segunda Turma,
Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 17.9.13)
Assim, acórdão recorrido revela-se
em consonância com a jurisprudência desta Corte. (STF, ARE 1124653 / DF, Relator(a): Min. EDSON FACHIN
Julgamento: 21/06/2018, DJ-e nº 125, Divulg. Em 22/6/2018, publicado em 25/6/2018) (Grifo nosso)
Julgamento: 21/06/2018, DJ-e nº 125, Divulg. Em 22/6/2018, publicado em 25/6/2018) (Grifo nosso)
Em que pese tal
entendimento, os conselhos de fiscalização profissional não foram equiparados à
Fazenda Pública para o fim de usufruir das garantias processuais a ela
inerentes[4], muito embora, como visto,
tenha sido afirmado o regime híbrido a que se sujeitam por conta da natureza
autárquica conferida pelo Excelso Pretório. Vale confirmar a orientação atual
com excerto do voto do Ministro Marco Aurélio no RE nº 938.837 (Tema 877 da
Repercussão Geral), que assim se manifestou:
Há
mais: se formos ao artigo 100 da Constituição Federal, veremos que o sistema de
precatório diz respeito a pagamentos a serem feitos não pelos Conselhos –
autarquias especiais –, mas pelas Fazendas Públicas. Se entendermos que Conselhos integram o conceito de
Fazenda Pública, vamos, até mesmo, estender possíveis débitos existentes a ela,
Fazenda Pública, no caso, a Fazenda Pública Federal.” (Grifo nosso)
Ao final dos debates, o Acórdão proferido no RE nº
938.837, restou assim ementado:
EXECUÇÃO – CONSELHOS – ÓRGÃOS DE
FISCALIZAÇÃO – DÉBITOS – DECISÃO JUDICIAL. A execução de débito de Conselho de
Fiscalização não se submete ao sistema de precatório. (STF, RE 938.837,
Relator(a): Min. EDSON FACHIN,
Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO
AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 19/04/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO
GERAL - MÉRITO DJe-216 DIVULG 22-09-2017 PUBLIC 25-09-2017)
Feitas essas colocações,
faz-se imperioso ressaltar que não obstante o termo Fazenda Pública consigne,
como regra, as pessoas jurídicas de direito público, o conceito pode ser
emprestado para abranger, excepcionalmente, as empresas públicas e, até mesmo,
as sociedades de economia mista prestadoras de serviço, desta feita por
equiparação. Foi o que ocorreu com a
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT), cuja equiparação foi
conferida por meio do Decreto-lei nº 509/69 ex
vi da jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal[5].
Na verdade, as pessoas
jurídicas de direito privado criadas pelos entes federados para prestação de
serviço público acabam como atrair essa equiparação diante da própria
contextualização conferida ao conceito largo de Fazendo Pública, consoante se
extrai do famoso Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva. Eis o significado
que ali consta:
E, desta forma, Fazenda Pública é
sempre tomada, em amplo sentido, significando toda soma de interesses de ordem patrimonial ou financeira da
União, dos Estados federados ou do Município, pois que, sem distinção, todas se
compreendem na expressão.[6] (Grifo nosso)
Sabe-se
que esses entes, embora tenham sido criados pelo Estado sob a roupagem de
direito privado, o foram sob o enredo do interesse público, cujas
características imanentes à essencial continuidade da prestação do serviço
requisitam do Estado previsão orçamentária e aporte financeiro para fazer face
às comodidades a serem promovidas, de modo a atrair, em eventual demanda
judicial, as prerrogativas de Fazenda Pública. Em todo caso, deve restar
evidenciado, nessas hipóteses, tratar-se de serviço público essencial que não
esteja submetido ao regime de concorrência ou aferição de lucro, como já deixou
assente o Supremo Tribunal Federal em inúmeros julgados. Importante a
transcrição do julgado paradigma:
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E
ADMINISTRATIVO. COMPANHIA ESTADUAL DE SANEAMENTO BÁSICO. SOCIEDADE DE ECONOMIA
MISTA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. EXECUÇÃO PELO REGIME
DE PRECATÓRIOS.
1. Embora, em regra,
as empresas estatais estejam submetidas ao regime das pessoas
jurídicas de direito privado, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no
sentido de que “entidade que presta serviços públicos essenciais de
saneamento básico, sem que tenha ficado demonstrado nos autos se tratar de
sociedade de economia mista ou empresa pública que competiria com pessoas
jurídicas privadas ou que teria por objetivo primordial acumular patrimônio e
distribuir lucros. Nessa hipótese, aplica-se o regime de precatórios” (RE
592.004, Rel. Min. Joaquim Barbosa).
2. É aplicável às companhias
estaduais de saneamento básico o regime de pagamento por precatório (art. 100
da Constituição), nas hipóteses em que o capital social seja
majoritariamente público e o serviço seja prestado em
regime de exclusividade e sem intuito de lucro.
3. Provimento do agravo regimental
e do recurso extraordinário. (STF, RE 627242 AgR /DF, Relator(a):
Min. MARCO AURÉLIO
Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO
Julgamento: 02/05/2017 , DJe-110 DIVULG 24-05-2017 PUBLIC 25-05-2017)
Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO
Julgamento: 02/05/2017 , DJe-110 DIVULG 24-05-2017 PUBLIC 25-05-2017)
Nesse contexto,
confirma-se o atrelamento do conceito de Fazenda Pública à definição conferida
à Administração Pública em sentido subjetivo, observadas as nuances acima
reportadas, de onde de haure o seu verdadeiro sentido.
Desta feita, sob o enredo
do conceito largo de Fazenda Pública, ingressa-se na segunda etapa do presente
estudo, assente no exame da normatividade do processo especial de execução
contra a Fazenda Pública enquanto prerrogativa ela conferida e sobre a qual
recaem as mais importantes controvérsias.
CAPÍTULO
II
2
DA EXECUÇÃO DE QUANTIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA: PANORAMA NORMATIVO
Diversas
são as prerrogativas em favor da Fazenda Pública que poderiam ser citadas como
necessárias a concretizar a igualdade material entre as partes em ambiente
processual, tais como: prazo processual em dobro, juízo privativo, duplo grau
de jurisdição, isenção de custas processuais e muitas outras. Porém, elegeu-se
o processo de execução especial contra a Fazenda Pública em razão dos marcantes
debates que ainda se fazem presentes quando em confronto com os paradigmas do
processo comum de execução, mormente no que tange ao fundamento maior que a
subscreve, qual seja: a supremacia do interesse público.
A
evolução desse fundamento impõe, na atualidade, diversos olhares sobre o
sistema processual extravagante diante da tênue linha que separa o interesse
público e o interesse privado, de modo que, nesse primeiro momento, faz-se
crível pormenorizar a normatividade em que se assenta a prerrogativa eleita
para que se possa envidar a respectiva análise.
2.1 Síntese histórica
A outorga da Constituição
Política do Império do Brasil de 1824 trouxe em seu artigo 15, inciso XV, um
precedente categórico de proteção aos bens da Administração Pública no Brasil.
Por meio dele se vislumbrou, pela primeira vez, a possibilidade de decretar a
inalienabilidade de bem público nacional pelo Congresso (Assembleia Geral, na
época), trazendo uma nova visão sobre os bens de natureza pública e sua devida
proteção, já que antes eles obtinham tratamento patrimonial comum, podendo a
Administração Pública responder com eles caso sobreviessem demandas judiciais.
Com o tempo, a noção de bem público foi
ganhando corpo, de modo que vige, hodiernamente, a inarredável
inalienabilidade/impenhorabilidade de bens públicos em todos os níveis de governo,
consoante se vislumbra no ordenamento jurídico nacional[7]. Esse foi o embrião do
processo especial de execução contra a Fazenda Pública.
Em relação ao processo
especial de execução contra a Fazenda Pública em si, congregando as
especificidades diversas do processo de execução comum, pode-se dizer que o seu
marco legal ocorreu por ocasião da edição do Código de Processo Civil de 1939,
precisamente no parágrafo único do art. 918, que assim estabeleceu:
Art. 918. Na execução por quantia
certa, o devedor será citado para, em vinte e quatro (24) horas, contadas da
citação, pagar, ou nomear bens à penhora, sob pena de serem penhorados os que
se lhe encontrarem.
Parágrafo único. Os pagamentos
devidos, em virtude de sentença, pela Fazenda Pública, far-se-ão na ordem em
que forem apresentadas as requisições e à conta dos créditos respectivos,
vedada a designação de casos ou pessoas nas verbas orçamentárias ou créditos
destinados àquele fim.
As verbas orçamentárias e os
créditos votados para os pagamentos devidos, em virtude de sentença, pela
Fazenda Pública, serão consignados ao Poder Judiciário, recolhendo-se as
importâncias ao cofre dos depósitos públicos. Caberá ao presidente do Tribunal
de Apelação, ou do Supremo Tribunal Federal, se a execução fôr contra a Fazenda
Nacional, expedir as ordens de pagamento, dentro das fôrças do depósito, e, a
requerimento do credor preterido em seu direito de precedência autorizar o
sequestro da quantia necessária para satisfazê-lo, depois de ouvido o
Procurador Geral[8].
O dispositivo já guardava
o teor protecionista da coisa pública, legitimado pela Constituição de 1934,
que foi a primeira a dispor acerca do regime de precatórios[9], sistema este que consiste
no mecanismo de pagamento de dívidas judiciais pecuniárias da Fazenda Pública,
as quais são administradas em função do tempo em que foram adquiridas, na
preferência das mais antigas para as mais recentes, levando em conta,
inevitavelmente, a disponibilidade orçamentária da Fazenda demandada para
custeá-las. Esse sistema, que doutrinadores como Francisco Lacerda Dantas
afirmam ter sido criado e desenvolvido pelo próprio Brasil[10], é ainda hoje adotado e
utilizado, nos moldes do previsto no Art. 100, da Carta Magna de 1988.
Dentre os
aperfeiçoamentos ao sistema de Precatórios, destacam-se: o direito de
preferência dos créditos alimentícios, principalmente a credores idosos,
portadores de doenças graves e deficientes; e as chamadas Requisições de
Pequeno Valor (RPV), então previstas nos §§ 1º, 2º, 3º e 4º do Art. 100, da
Constituição da República.
Notável herança do Código
Processual de 1939, o instituto da execução contra a Fazenda foi ampliado no
Código de 1973[11],
a ponto de ganhar uma Seção só sua, no Capítulo IV, que tratava da “Execução de
Quantia Certa Contra Devedor Solvente”.
A novel legislação
assegurou à Fazenda Pública o benefício do custeio de suas demandas por meio do
sistema de precatórios, sistemática menos agressiva que a comum,
impossibilitando o cumprimento da obrigação de forma voluntária, atribuindo-lhe
o prazo de 10 (dez) dias, contados a partir da citação, para oposição de
Embargos à Execução, em vez de pagamento imediato, conforme previsão dos arts.
730 e 731 do citado Diploma Legal.
Posteriormente, novas
normas foram surgindo e expandindo as prerrogativas destacadas nos regramentos
do Código, ampliando, por exemplo, de dez para trinta dias o prazo para a
Fazenda opor Embargos[12], ao tempo em que se passou
a expressar literalmente o conceito de Fazenda Pública, com a inclusão das
pessoas jurídicas de direito público integrantes da Administração Indireta[13].
Historicamente, portanto,
observa-se que as normas passaram gradativamente a proteger a Fazenda Pública,
a demandar ilação no sentido de que, em sede legislativa, consolidou-se um
olhar mais publicista sobre o processo de execução, fato que vem sendo
questionado na atualidade sobre diversas vertentes teóricas, dentre as quais se
insere a nova feição conferida aos fundamentos que legitimam as prerrogativas
processuais, como a supremacia do interesse público.
2.2 Processos de Execução contra a Fazenda
Pública
Entende-se por Execução
de Sentença ou “execução forçada pelo Estado” a fase processual destinada ao
cumprimento de obrigação cartularizada em título judicial ou extrajudicial,
devendo o juiz competente, à requerimento da parte detentora do título ou de
ofício, implementar os meios de constrangimento eficazes e previstos em lei
para a satisfação daquela obrigação. Para tanto, conforme os ensinamentos de
Didier Júnior, nosso ordenamento jurídico estabelece dois tratamentos
executivos distintos, a depender da formação do título:
Há duas técnicas processuais para
viabilizar a execução de sentença: a) processo autônomo de execução: a
efetivação é objeto de um processo autônomo, instaurado com essa preponderante
finalidade; b) fase de execução: a execução ocorre dentro de um processo já
existente, como uma de suas fases. Toda a execução realiza-se em um processo de
execução, procedimento em contraditório, seja em um processo instaurado com
esse objetivo, seja como fase de um processo sincrético.
[...]
Reformas promovidas no CPC-1973, a
partir da década de 1990, já consagravam a opção legislativa de oferecimento
das tutelas de certificação e efetivação do direito em um mesmo processo. A
execução das sentenças, gradativamente, passou a não mais ocorrer em processo
autônomo, mas, sim, como fase complementar ao processo de conhecimento. Por
causa dessa característica, a doutrina passou a designar tais processos de
"sincréticos", "mistos" ou "multifuncionais",
pois serviriam a mais de um propósito: certificar e efetivar. [14]
Com da alteração do
Código de Processo Civil de 1973, ocasionada pela Lei nº 11.232 de 2005, a
sentença condenatória para pagamento de quantia certa, obtida ao final do
Processo de Conhecimento, passou a ser executada de maneira sincrética, sendo
criada a fase de Cumprimento de Sentença, o que, como visto acima, figura como
técnica processual padrão em execuções de sentença de título executivo
judicial.
Atualmente, na vigência
do Código Processual Civil de 2015, o Cumprimento de Sentença permanece
regulamentado, desta vez, no mesmo Livro I da Parte Especial do Código, o qual
pertence também o Processo de Conhecimento, conciliando tanto as obrigações de
pagar quantia quanto as obrigações de fazer, não-fazer e dar coisa, que antes
eram nominadas como “Tutelas Específicas”. Já o Processo de Execução, voltado
especificamente para os títulos extrajudiciais, estabelece-se como processo
autônomo, com previsão no Livro II da mesma Parte Especial.
No que tange à execução
promovida em desfavor da Fazenda Pública, faz-se crível que se reconheça, desde
logo, a inaplicabilidade dos institutos executórios comuns, analisados acima,
uma vez que as pessoas jurídicas de direito público sobre as quais recaem a
execução sujeitam-se ao princípio da legalidade orçamentária[15], impossibilitando a
criação de despesas sem previsão de receitas, fato que as incorpora na categoria
de devedores solventes. Ademais, como se viu alhures, os bens públicos, por
estarem afetados ao domínio público, não podem ser expropriados em face do não
pagamento voluntário, uma vez que são inalienáveis e impenhoráveis. Sob este
prisma, reforça Marinoni, Arenhart e Mitidiero:
Porém, as técnicas executivas
variam não apenas em razão das diferentes necessidades em se obter o crédito
pecuniário, mas também em virtude das características do executado, que podem
exigir procedimento singular. É que ocorre na execução contra a Fazenda
Pública. Os bens da Fazenda Pública são regidos por disciplina específica. O
seu patrimônio, porque em princípio afetado a uma finalidade pública, não pode
ser livremente alienado ou onerado (art. 100 do CC). Ademais, os débitos da
Fazenda Pública devem limitar-se ao teto previsto nos orçamentos (ou créditos
extraordinários adicionais) aprovados pelo Legislativo (art. 167, II da CF),
podendo ser saldados apenas se o montante devido para tanto estiver previamente
incluído no orçamento do respectivo órgão. Isto faz com que a técnica executiva
voltada à tutela pecuniária contra a Fazenda Pública seja regulada de forma
especial [...].[16]
O Código de Processo
Civil de 2015 trouxe a previsão de processo de execução específico para a
Fazenda Pública, a exemplo dos Códigos anteriores. A diferença é que, desta
vez, fez incorporar às condições de procedibilidade as duas técnicas
processuais acolhidas pelo processo civil brasileiro, diversamente do Código
anterior, em que somente era possível executar a Fazenda Pública por meio de
ação autônoma.
Desta forma, a partir da
vigência do novo Código de Processo Civil (CPC), a execução de sentença contra
a Fazenda Pública pode ser efetuada por meio da fase de Cumprimento de
Sentença, quando o título executivo for judicial, ou, por meio de Processo de
Execução, quando o título a ser executado for extrajudicial.
2.3
Títulos Executivos Judiciais
Na hipótese de título
executivo judicial[17] contra a Fazenda Pública,
que reconheça exigível a obrigação de pagar quantia certa, dispõe o art. 534,
do Código de Processo Civil (CPC) vigente, que o exequente apresente
demonstrativo de crédito atualizado e devidamente discriminado, consignando os
seguintes requisitos:
I - o
nome completo e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no
Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica do exequente;
II - o
índice de correção monetária adotado;
III - os
juros aplicados e as respectivas taxas;
IV - o
termo inicial e o termo final dos juros e da correção monetária utilizados;
V - a
periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso;
VI - a
especificação dos eventuais descontos obrigatórios realizados.
Faz-se mister aludir que
a sentença que condena a Fazenda Pública, se ilíquida, deverá passar por
liquidação para posterior execução, liquidação esta que deve seguir seus
ditames ordinários, regulamentados nos art. 509 a 512 do CPC. Aduz-se também
que, após a apresentação do demonstrativo de crédito, distintamente da fase de
Cumprimento de Sentença comum, onde a parte executada é intimada para pagar o
débito em 15 (quinze) dias, a Fazenda Pública será intimada, na pessoa de seu
representante legal,[18] para, querendo,
apresentar Impugnação à Execução nos próprios autos, no prazo de 30 (trinta) dias,
de acordo com o art. 535 do CPC 2015. Acerca dessa diferença de tratamento,
assevera Didier Jr.:
Sendo o executado a Fazenda
Pública, não se aplicam as regras próprias da execução por quantia certa, não
havendo a adoção de medidas expropriatórias para a satisfação do crédito. Os
pagamentos feitos pela Fazenda Pública são despendidos pelo erário, merecendo
tratamento específico à execução intentada contra as pessoas jurídicas de
direito público, a fim de adaptar as regras pertinentes à sistemática do precatório.
Não há, enfim, expropriação na execução intentada contra a Fazenda Pública,
devendo o pagamento submeter-se ao regime jurídico do precatório.[19]
Tendo em vista o aludido
regime de precatórios, o devido respeito à ordem de preferência do crédito fazendário
e a impenhorabilidade dos bens públicos, há previsão expressa no CPC 2015 para
a não aplicação da multa por descumprimento voluntário da obrigação.[20]
A partir da intimação do
art. 535, do CPC, encerrado o prazo para
a Impugnação pela Fazenda Pública sem que mesma dele tenha se utilizado,
subentende-se que ela não entendeu cabíveis qualquer dos argumentos listados no
rol do artigo supracitado, de modo que, por não obstaculizar o prosseguimento
da execução, o CPC 2015 premia a Fazenda, escusando-a do custeio de honorários
de advogado quando o valor da sentença ensejar expedição de precatório, a teor
do que preceitua o § 7º do art. 85, in verbis:
Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar
honorários ao advogado do vencedor.
[...]
§ 7o Não serão devidos honorários
no cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública que enseje expedição de
precatório, desde que não tenha sido impugnada.
No caso de execução que
dependa apenas de requisição de pequeno valor, é pacífico o entendimento do
Supremo Tribunal Federal de que são devidos os honorários, embora haja exceção
em caso da renúncia, por parte do Exequente, do valor que exceder o limite para
RPV, sendo tal renúncia posterior ao trânsito em julgado da sentença
condenatória que garantiu o crédito. Vale a transcrição da ementa do recente
julgado:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO ADMINISTRATIVO. EXECUÇÃO NÃO EMBARGADA CONTRA A
FAZENDA PÚBLICA. RENÚNCIA AO VALOR EXCEDENTE ÀQUELE PREVISTO NO ARTIGO 87 DO
ADCT PARA A EXPEDIÇÃO DE REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR. RENÚNCIA POSTERIOR AO
TRÂNSITO EM JULGADO DE SENTENÇA ORIGINALMENTE SUJEITA AO REGIME DE PRECATÓRIOS.
FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE
NEGA PROVIMENTO. 1. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE
n.º 420.816, Relator para o acórdão o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de
10.12.06, declarou a constitucionalidade do artigo 1º-D da Lei 9.494/97, na
redação dada pela MP n.º 2.180-35/01, que dispensa o pagamento de honorários
advocatícios nas execuções não embargadas contra a Fazenda Pública,
excepcionando, todavia, a hipótese de pagamento de obrigações definidas em lei
como de pequeno valor. 2. No voto condutor daquele julgado, o Ministro
Sepúlveda Pertence, Relator para o acórdão, ressaltou que, no caso, a
impossibilidade da fixação de honorários advocatícios decorre do fato de que o
Poder Público, quando condenado ao pagamento de quantia certa, ressalvada a
hipótese de crédito de pequeno valor, não pode adimplir a obrigação de forma
espontânea, uma vez que deve estrita obediência ao regime constitucional de
precatórios. 3. A Fazenda Pública foi condenada ao pagamento de quantia
superior àquela definida em lei como de pequeno valor, sendo imprescindível,
portanto, a instauração da execução prevista no artigo 730 do CPC. 4. No
presente caso, a renúncia ao valor excedente àquele previsto no artigo 87 do
ADCT para a expedição da requisição de pequeno valor ocorreu com o ajuizamento
da execução. 5. O Poder Público não deu causa ao ajuizamento da execução, não
podendo, por conseguinte, ser condenado ao pagamento de honorários
advocatícios. 6. In casu, o acórdão recorrido assentou que: “ADMINISTRATIVO.
PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. FAZENDA
PÚBLICA. EXECUÇÃO. RENÚNCIA DOS VALORES EXCEDENTES. EXPEDIÇÃO DE RPV. FIXAÇÃO
DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DE AMBAS AS TURMAS QUE
COMPÕEM A PRIMEIRA SEÇÃO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Nas execuções não embargadas
de título judicial em que a parte exequente renunciou aos valores excedentes a
40 (quarenta) salários mínimos, possibilitando, assim, o pagamento por meio de
Requisição de Pequeno Valor – RPV, é possível a condenação da Fazenda Pública
ao pagamento de honorários advocatícios. Nesse sentido: AgRg no REsp
1.223.892/RS, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, Primeira Turma, DJe 26/4/11; AgRg
no REsp 1.214.386/RS, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, Segunda Turma, DJe 23/3/11.
2. Agravo regimental não provido”. Agravo regimental a que se nega provimento.[21]
Também serão devidos
honorários quando houver execuções individuais de sentença proferida em ações
coletivas, mesmo que não haja apresentação de defesa da Fazenda Pública,
conforme preconiza a Súmula 345 do STJ.
Aliada ao benefício (ou
não) da isenção de pagamento dos honorários, outra consequência decorrente da
ausência de impugnação ao cumprimento de sentença ou decisão transitada em
julgado que não inadmita ou rejeite tal impugnação oferecida pela Fazenda é a
expedição de precatório ou requisição de pequeno valor ao Presidente do
tribunal para o qual responde o julgador competente, devendo ser observados os
pressupostos do já citado art. 100 da CF/88.
Caso a Fazenda Pública
entenda cabível a impugnação, esta deverá versar sobre as alegações contidas no
rol do art. 535, do CPC, considerando-se precluso o debate sobre as matérias
arguidas na fase de conhecimento, conforme anuncia o art. 508, do CPC.
Outrossim, a Impugnação
oferecida pela Fazenda Pública deverá ser recebida no efeito suspensivo, tendo
em vista interpretação do regramento presente no § 5º do art. 100 da
Constituição da República, o qual preconiza que a expedição de precatório
depende necessariamente do trânsito em julgado da decisão. No Cumprimento de
Sentença ordinário, o § 6º do art. 525 do CPC, por sua vez, delimita que o
efeito suspensivo não é a tônica do sistema, de modo que, há que se considerar
que a regra constitucional encerra uma prerrogativa fazendária.
2.4
Títulos Executivos Extrajudiciais
A possibilidade de execução
de título extrajudicial contra a Fazenda Pública foi motivo de intenso debate
nos Tribunais Superiores e bem antes da entrada em vigor do novo Código,
inclusive. Parte da doutrina acreditava que o título extrajudicial, por não
estar expresso no art. 100, da CRFB/88, que versa sobre o sistema especial de
execução judicial contra a Fazenda Pública por meio de precatórios ou
requisição de pequeno valor, não poderia ser objeto de execução em sede
judiciária.
Por outro lado, partindo
do pressuposto que o mencionado dispositivo constitucional apregoa a palavra
“sentença judicial” em seu corpo, parte da doutrina sustentou tese no sentido
de que o legislador constituinte derivado almejava referir-se, na verdade, a
“qualquer decisão judicial”, inclusive a que inicia o Processo de Execução.[22]
Para solucionar a
polêmica instaurada sobre o assunto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), após
reiterados julgados com o mesmo entendimento[23], editou a Súmula 279,
consolidando a jurisprudência pátria no seguinte sentido, in verbis:
Súmula 279
É cabível execução por título
extrajudicial contra a Fazenda Pública.
O novo CPC, por sua vez,
ao cuidar do processo de execução de título executivo extrajudicial contra a
Fazenda Pública, optou pela manutenção do corpo sistemático do Código anterior,
estabelecendo um processo autônomo de execução com todas as garantias processuais
naturalmente constituídas, tendo em vista que se trata basicamente de matéria
nova, não apreciada pelo Poder Judiciário. Nesses termos, o novo Código traz a
previsão da execução créditos extrajudiciais fazendários, créditos estes que
devem ser custeados pelo erário, caso a Fazenda sucumba.
Tal qual ocorre no
Cumprimento de Sentença, na execução de título extrajudicial em que a Executada
é a Fazenda Pública, a citação não estabelece prazo para pagamento imediato,
mas sim para opor Embargos à Execução, concedendo 30 (trinta) dias para tanto,
mesmo prazo da Impugnação vista acima.
Desta feita, o processo
autônomo de execução possui potencial bem mais amplo de discussão acerca dos
pressupostos ensejadores da propositura da demanda, a ocorrer por meio de Embargos
à Execução. Nesse sentido, Didier Jr. preceitua:
Não há limitação cognitiva nos
embargos à execução. De acordo com o§ 2º do art. 910 do CPC, "Nos
embargos, a Fazenda Pública poderá alegar qualquer matéria que lhe seria lícito
deduzir como defesa no processo de conhecimento". Enquanto na impugnação
ao cumprimento da sentença a Fazenda Pública somente pode alegar as matérias
relacionadas no art. 535 do CPC, não há limite relativamente ao conteúdo dos
embargos à execução.
Sendo a execução fundada em título
extrajudicial, não há limitação cognitiva. A Fazenda Pública pode alegar toda e
qualquer matéria. É nos embargos que a Fazenda Pública pode, inclusive, alegar
incompetência absoluta ou relativa do juízo da execução, nos termos do art.
917, V. A arguição de impedimento e de suspeição deve observar o disposto nos
arts. 146 e 148.[24]
A não oposição de
Embargos por parte da Fazenda, no prazo legal, acarreta à executada as mesmas
consequências vislumbradas na ausência de Impugnação no Cumprimento de sentença,
quais sejam: a não incidência de honorários, observadas as exceções tratadas,
bem como a expedição de precatórios ou requisição de pequeno valor, já
explanadas com contumácia.
Por outro lado, se
apresentados os Embargos no prazo, deve ser atribuído, desde logo, o efeito
suspensivo, fundamentado, como visto anteriormente, na necessidade de trânsito
em julgado de sentença para haver o devido planejamento orçamentário e,
consecutivamente, a expedição de precatório. Traduz-se a situação especial em
prerrogativa da Fazenda, tendo em vista que o efeito suspensivo de Embargos à
Execução em sede ordinária só é concedido com a contrapartida de caução
suficiente.
O indeferimento liminar,
a inadmissão ou a rejeição aos Embargos à Execução pelo juiz são recorríveis
mediante Apelação, tendo em vista que, apesar de executório, se está diante de
um novo processo, autônomo, que produziu sentença desfavorável e que, segundo
entendimento do STJ, não se sujeita ao reexame necessário. Vale conferir:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL
NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DO DEVEDOR JULGADOS IMPROCEDENTES. APELO NAO
CONHECIDO POR INTEMPESTIVIDADE. ALEGAÇAO DE NULIDADE DA EXECUÇAO EM EMBARGOS DE
DECLARAÇAO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO NAO PROVIDO.
1. "A sentença que rejeita ou
julga improcedentes os embargos à execução opostos pela Fazenda Pública não
está sujeita ao reexame necessário" (REsp 1.107.662/SP, Rel. Min. MAURO
CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma, DJe 2/12/10).
2. "O exame do mérito do
recurso pelo órgão de segundo grau, incluindo as matérias de ordem pública,
somente ocorre se ultrapassado o juízo de admissibilidade" (EDcl no REsp
195.848/MG, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, Quarta Turma, DJe
12/8/02).
3. Agravo regimental não provido.[25]
Caso o juiz receba o
Embargos da Fazenda, será seguido o regramento constante no art. 920 e incisos
do CPC, a saber:
Art. 920. Recebidos os embargos:
I - o exequente será ouvido no
prazo de 15 (quinze) dias;
II - a seguir, o juiz julgará
imediatamente o pedido ou designará audiência;
III - encerrada a instrução, o juiz
proferirá sentença.
Em
suma, as normas demonstram, sem sombra de dúvidas, a existência de tratamento
especial conferido à Fazenda Pública, a consubstanciar uma das suas principais
prerrogativas processuais.
Fixado
o roteiro jurídico sobre o qual se assenta o processo especial de execução
contra a Fazenda Pública, onde se vislumbra toda a evolução normativa a
envolver a excepcionalidade do regime que, em efetivo, consolida a existência
de regras extravagantes à execução comum, impõe-se a análise dessa prerrogativa
à luz do seu princípio fundante e que ora é chamado a justificar a inserção das
prerrogativas processuais como mecanismo necessários a conferir igualdade
material dentro do sistema processual vigente.
CAPÍTULO
III
3
O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO COMO FUNDAMENTO A LEGITIMAR A
PRERROGATIVA DO PROCESSO ESPECIAL DE EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA.
Em primeiro lugar,
faz-se mister ressaltar que as pessoas jurídicas quando em litígio possuem as
garantias do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, do amplo
acesso à justiça, do prazo razoável de duração do processo, de modo que a
igualdade no tratamento processual com vistas à prestação da tutela
jurisdicional não pode deixar de enfrentar os pressupostos que encerram o
princípio da isonomia.
Sob
tal contexto, emerge o primeiro aspecto que deve ser levado em consideração
para aferir as garantias processuais conferidas à Fazenda Pública, qual seja: a
percepção da igualdade entre as partes. Se as garantias consubstanciarem
desequilíbrio dentro do sistema judicial em favor da Fazenda Pública, diz-se
que se está diante de verdadeiros privilégios, caso negativo, as garantias
consubstanciam prerrogativas a igualar materialmente as partes envolvidas.
Nessa
seara, não se pode esquecer que o princípio da igualdade, previsto no Art. 5º,
caput, da Constituição da República de 1988, se erige como direito fundamental
a ser resguardado em toda relação processual, a impor tratamento materialmente
isonômico entre as partes, transcendendo, desta feita, o contexto puramente
formal.
Posta
assim a questão, o primeiro questionamento a ser enfrentado sob o escopo do
princípio da igualdade está circunscrito ao fundamento primeiro indicado como
legitimador dessas garantias em favor da Fazenda Pública, qual seja: a
supremacia do interesse público.
O
princípio da supremacia do interesse público é referenciado como um dos vetores
a legitimar as prerrogativas processuais em favor da Fazenda Pública,
conferindo a impressão primeira de que a tutela do interesse público, sob o
contexto da satisfação coletiva, se sobrepõe ao interesse individual e, como
tal, deve a Administração Pública gozar de tais benefícios como medida
naturalmente decorrente de sua atividade. Mas o que se entende por supremacia
do interesse público?
Hodiernamente, a roupagem da conotação conferida à supremacia do
interesse público vem sendo modificada no que tange ao seu referencial teórico,
então concebido sob o contexto da máxima da superioridade coletiva sobre o
particular[26].
Sim, porque o interesse público, na visão pós-moderna, não se resume,
certamente, ao interesse coletivo. A entronização dos direitos do homem na
Carta Política, advinda com o surgimento do constitucionalismo mundial, destaca
esses direitos fundamentais como garantias a serem asseguradas pelo Estado, de
modo que, na atualidade, a supremacia do interesse público deve ser vista sob o
contexto dessa evolução, dessa passagem do Estado de sujeição ao Estado de
serviço[27], por meio do qual a
salvaguarda de uma garantia individual deve consubstanciar, igualmente, o
interesse público a ser tutelado. Sobre o tema, o Prof. Gustavo Binenbojm, em
artigo publicado na Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado nº 13, deixa
assente essa nova feição da supremacia do interesse público ao dispor, in verbis:
Tributária de concepções
organicistas antigas e modernas, a ideia da existência de um interesse público
inconfundível com os interesses pessoais dos integrantes de uma sociedade
política e superior a eles não resiste à emergência do constitucionalismo e à
consagração dos direitos fundamentais e da democracia como fundamentos de
legitimidade e elementos estruturantes do Estado democrático de direito.
Também a noção de um princípio
jurídico que preconize a prevalência a priori de interesses da coletividade
sobre os interesses individuais revela-se absolutamente incompatível com a
ideia da Constituição como sistema aberto de princípios, articulados não por
uma lógica hierárquica estática, mas sim por uma lógica de ponderação
proporcional, necessariamente contextualizada, que ‘demanda uma avaliação da
correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da
conduta havida como necessária à sua promoção.
[...]
O reconhecimento da centralidade do
sistema de direitos fundamentais instituído pela Constituição e a estrutura
pluralista e maleável dos princípios constitucionais inviabiliza a determinação
a priori de uma regra de supremacia absoluta dos interesses coletivos sobre os
interesses individuais ou dos interesses públicos sobre os interesses privados.
A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público, aliada à natural
dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse público reside na
própria preservação dos direitos fundamentais (e não na sua limitação em prol
de algum interesse contraposto à coletividade), impõe à Administração Pública o
dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização
até um grau máximo de otimização.[28]
A par de tal alicerce,
vislumbra-se que a conotação emprestada à supremacia do interesse público,
enquanto fundamento das prerrogativas conferidas à Fazenda Pública, não pode
estar dissociada desse contexto constitucional, no qual os direitos
fundamentais impõem matizes ao interesse público, a requisitar ponderação na
avaliação desses benefícios processuais sob o crivo do princípio da igualdade,
podendo atrair, desta feita, juízos de razoabilidade e proporcionalidade,
conforme o caso.
Posta assim a questão, a
avaliação das prerrogativas processuais em favor da Fazenda Pública sobre a
ótica do princípio da igualdade deve envolver, necessariamente, a análise de
eventual distorção dentro do sistema sob o escopo da conotação conferida ao
interesse público acima alinhada, a submeter o avaliador ao necessário juízo de
ponderação em face de outras garantias que são comuns a todas as pessoas
jurídicas, a exemplo do acesso à justiça e do prazo razoável do processo, dois
pontos sobre os quais incidem os principais debates no que tange à previsão de
execução especial contra a Fazenda Pública, tida como uma das mais importantes
prerrogativas, cuja linhagem é de índole
constitucional.
Maria Lúcia Miranda
Alvares, em artigo intitulado “A Fazenda Pública tem privilégios ou
prerrogativas processuais?”[29], entende ser a citada
prerrogativa inarredável à consecução do planejamento estatal e, por
derradeiro, do próprio bem comum. Importante a leitura:
Na verdade, todos
devíamos conhecer com profundidade as questões orçamentárias, principalmente no
que diz respeito às regras hoje vigentes, onde a trilogia Plano Plurianual –
PPA, Lei de Diretrizes Orçamentária – LDO e Lei Orçamentária Anual – LOA, além
de traduzir a política de gestão fiscal, conferem os elementos que impulsionam
a economia, base de todas as ações governamentais, inclusive as
judiciárias. [9]. Nessa esteira de raciocínio, há que se
consentir que as prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública, principalmente as relativas aos
precatórios, não são apenas pertinentes, mas necessárias para atingir o bem
comum, que será concretizado mediante ações implementadas pelo Estado,
planejadas e programadas sob o contexto do orçamento público. Desta feita, igualar o
particular ao ente público em nível de execução judicial seria o mesmo que
trabalhar com o contingenciamento de todo o orçamento, o que inviabilizaria
melhores condições de investimento, de crescimento econômico, a repercutir
diretamente sobre o cidadão.
Aliás, se com o
sistema de precatório ainda se corre o risco de um colapso no sistema, eis que
em muitos municípios, por exemplo, as receitas públicas mal conseguem sustentar
a máquina estatal, imagine sem o sistema de
precatórios. Seria o caos. Todos os programas de governo ficariam à mercê das
execuções judiciais e quem sofreria, em última análise, seria a própria
população. (Grifo nosso)
Não obstante a ótica
acima delineada, vislumbra-se que em debate travado pelos Ministros do Supremo
Tribunal Federal por ocasião do julgamento do RE 938.837/SP, em que se avaliava a extensão da prerrogativa do processo
especial de execução contra a Fazenda Pública em favor dos Conselhos
Profissionais, divergências importantes foram esposadas, a demandar que a
questão está aberta a outros posicionamentos.
Para melhor entendimento, traz-se à lume excertos dos votos em que os
pontos contrapostos são debatidos:
VOTO:
MINISTRO EDSON FACHIN:
[...]
Com efeito, o regime de precatórios
existe para, dentre outras funções, preservar a necessidade de previsão do
pagamento da dívida pública; evitar que a constrição de valores para pagamento
de dívidas individualizadas afete a prestação de serviço público; e observar o
princípio da isonomia entre os credores de dívidas públicas.
Segundo apropriadamente pronunciou
o Ministro Joaquim Barbosa no julgamento da Reclamação 3.982:
“a sistemática de pagamento por
precatório de créditos oriundos de sentenças transitadas em julgado opera como
salvaguarda da higidez das finanças públicas, por aumentar o grau de
previsibilidade do dispêndio. Também concebo que a sistemática favorece a
isonomia, por estabelecer critérios objetivos para o pagamento dos valores
devidos pela Fazenda Pública.”
VOTO: MINISTRO ALEXANDRE DE MORAIS:
[...]
E exatamente nesse tópico é que eu
gostaria de fazer algumas reflexões. Esta Corte salientou, no julgamento de
várias ações diretas – ADI 4.357, Rel. Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, DJe de
25/9/2014; ADI 4.372, Rel. Min. AYRES BRITTO, redator para acórdão Min. LUIZ
FUX, Tribunal Pleno, DJe de 25/9/2014; e ADI 4.425, Rel. Min. LUIZ FUX,
Tribunal Pleno, DJe de 12/12/2013 – nas quais se apreciou a grande discussão em
relação à EC nº 62/09, a excepcionalidade do regime de precatórios, conforme se
apura nos votos de todos os Ministros, mesmo os vencidos naquele momento.
Destacou-se a extrema excepcionalidade do sistema de precatórios, no sentido de
que a própria Corte deveria interpretar qualquer aumento de restrição ao
cumprimento de uma decisão judicial, vale dizer, qualquer endurecimento do
regime de precatórios, sempre de forma restritiva, em consonância com os
princípios – e isso foi muito salientado no voto do Ministro Redator, Ministro
LUIZ FUX – da isonomia e da separação de Poderes, porque o regime de
precatórios, embora constitucionalmente previsto, é, obviamente, uma restrição
ao Poder Judiciário. Ele é uma restrição ao cumprimento imediato das decisões
judiciais. Nesse sentido, por exemplo, o Ministro AYRES BRITTO, o primeiro a se
referir à "via crucis" do precatório, apontou a
impossibilidade de ampliação de restrições à aplicação do regime de
precatórios, dizendo que, depois de todo um demorado processo judicial, em que
o administrado vê reconhecido o seu direito de crédito contra a Fazenda Pública,
ainda teria que aguardar mais um período. Ou seja, que qualquer restrição às
decisões judiciais, ou qualquer ampliação, endurecimento em regime de
precatórios importaria contratura - disse o Ministro AYRES BRITTO - no
princípio da separação de Poderes. No caso – também dizendo ele - em desfavor
do Poder Judiciário.
Da mesma forma, na ADI 3.453 (DJ de
13/3/2007), a Relatora, Ministra CÁRMEN LÚCIA, salientou a mesma questão em
relação à necessidade da análise mais detalhada da ampliação de restrições a
serem aplicadas no regime de precatórios, afirmando que não deveriam ser
aceitas imposições de restrições que não se coadunem com o direito à
efetividade da jurisdição e o respeito à coisa julgada. Da mesma forma, a nossa
Presidente, na ADI 4.425, ao declarar inconstitucional a EC nº 62/09, sustentou
a impossibilidade, em virtude do caráter excepcionalíssimo do regime de
precatórios, da imposição de maiores restrições ao cumprimento das sentenças judiciais.
Disse a Ministra CÁRMEN LÚCIA à época:
"Também queria rapidamente
dizer que, para mim, o acesso à Justiça significa chegar ao Poder Judiciário e
ter uma resposta do Poder Judiciário - nos termos da Constituição - e ter a
execução desse julgado, o que é próprio do princípio do acesso ao Judiciário,
que é cláusula pétrea da Constituição."
A
par das questões levantadas, percebe-se a imanente comparação entre o regime
especial e o regime comum de execução processual, tendo como foco a aparente
colisão entre a prerrogativa processual conferida à Fazenda Pública e as
garantias de acesso à justiça e ao prazo razoável de duração do processo, que
ora se erguem como direitos fundamentais inscritos na Constituição da República
(Art. 5º, incisos XXXV e LXXVIII, da CRFB).
É
visível, também, no debate, a reprimenda à previsão constitucional quanto à
prerrogativa de execução especial contra a Fazenda Pública, consubstanciada na
colisão desta com os direitos fundamentais alinhados enquanto pressupostos
imanentes à própria efetividade da função jurisdicional, haja vista que a
entrega da prestação jurisdicional é condicionada a uma regra de cunho
executivo, advinda da função administrativa, pondo em xeque a harmonia e a separação
dos Poderes da República.
A
par dessa visão linear, percebe-se a existência de dois lados que parecem
totalmente contrapostos, quais sejam: (i) a necessidade de observância das
regras orçamentárias como forma de garantir a eficácia do julgado e a entrega
isonômica da prestação jurisdicional; e, do outro, (ii) a observância da
garantia ao acesso à justiça por meio da entrega da prestação jurisdicional em
tempo razoável, em concretização efetiva da função judicial. Dois lados da
mesma moeda que, em reflexão, submete o hermeneuta à reflexão sobre a própria
concepção do interesse público fundante da prerrogativa estatal.
Assim,
retoma-se ao questionamento do ponto nodal da questão: a supremacia o interesse
público enquanto elemento justificador dessa espécie de execução judicial
especialíssima, cuja feição contemporânea impõe a agregação do princípio da
razoabilidade e, mesmo, da proporcionalidade, como vetores a avaliar a
observância do princípio da isonomia entre as partes em litígio.
Nessa
seara, a primeira constatação que emerge está vinculada a um verdadeiro axioma,
cuja resolução aparentemente contraditória da situação processual sub examine
se revela por meio da observância empírica de aplicação das próprias regras
processuais presentes no novo Código de Processo Civil no que refere à execução
contra a Fazenda Pública.
Ora,
o Código de Processo Civil e a Constituição conferem o contorno das pessoas
jurídicas de direito público em litígio ao nominá-las de Fazenda Pública.
Fazenda Pública é um termo, como visto, vinculado à proteção das finanças
públicas, à preservação do patrimônio público, sem o qual o Estado não pode,
nem mesmo, exercer as três funções elementares da República: a executiva, a
legislativa e a judiciária. Desse modo, a normatividade processual vai indicar,
justamente, que o interesse público está em conferir normas extravagantes à
execução comum, inclusive no que se refere ao prazo de impugnação e, mesmo, aos
embargos à execução, como forma de proteger o Erário e concretizar a efetiva
prestação jurisdicional.
Em
juízo, portanto, a Administração Pública assume o papel de Fazenda Pública, a
demonstrar que, a execução processual especial a que tem jus, convoca a
supremacia do interesse público como seu elemento de freios e contrapesos entre
as próprias funções estatais, de modo que o olhar sobre essa prerrogativa está
inexoravelmente aberto para o debate sob o escopo da evolução contínua da vida
em sociedade.
4 CONCLUSÃO
A partir dos
levantamentos históricos apresentados, marcados pela evolução do conceito de
Fazenda Pública no Brasil, bem como o aperfeiçoamento da legislação especial
voltada para a proteção da Fazenda nas tutelas executivas de obrigação de pagar
quantia, desde a citação “para manifestação” em vez de pagamento, até o sistema
de precatórios enquanto objeto de maior polêmica, percebe-se que, em
decorrência das próprias características imanentes à Administração Pública,
consolidou-se a manutenção dessa legislação extravagante como importante
ferramenta à consecução do interesse público.
Em que pese tal
constatação, o atual protagonismo do Poder Judiciário frente às políticas
públicas submete as prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública a
intensos debates em ambiente jurídico, de modo que os elementos de comparação
entre o processo de execução especial, cujo desfecho se materializa com uma
agenda de pagamento pela via do precatório e, o processo de execução comum,
onde a determinação para pagamento da quantia certa convoca elementos mínimos
de intromissão das regras processuais, ora surgem como um diferencial
necessário ao equilíbrio entres os Poderes de Estado, ora como vetores de
desequilíbrio diante dos direitos fundamentais que sustentam o acesso à Justiça
e o razoável prazo do processo.
Os questionamentos são
muitos, mas a leitura das normas processuais, insculpidas expressamente no novo
Código de Processual Civil (CPC), torna visível a consolidação das regras
especiais de execução como necessárias ao sistema judicial quando em litígio a Fazenda
Pública. E não poderia ser diferente diante da matriz constitucional que assim
impõe sob o escopo do necessário equilíbrio fiscal (Art. 100 c/c os Arts. 165 a
169, da CRFB).
Nesse contexto, emergem
as mais diversas correntes de pensamento para refletir sobre os fundamentos que
legitimam a mantença dessas prerrogativas, muitas das quais tornam visível a
sua importância como ferramentas que condicionam a função judiciária e, como
tal, importam à governabilidade, conforme se pode extrair da doutrina de Maria
Lúcia Miranda Alvares, in verbis:
Nesse
contexto, as prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública teriam o
condão de condicionar o processo decisório, ora figurando como ferramentas de
proteção à independência das funções estatais, ora determinando a condução
desse processo em favor de suas ações, na medida em que o agir do
Poder Judiciário está a elas vinculado.
Nesse
patamar de racionalidade, não se pode negar que o Direito Processual, enquanto
ramo da Ciência Jurídica, traduz-se como um instrumento identificador de um
subsistema político, a ser escolhido pelo cidadão ou pela coletividade com o
objetivo de satisfação de um interesse individual ou social (ações coletivas),
submetendo o Poder Judiciário ao patamar de instituição que, de igual sorte,
importa à governabilidade. Assim sendo, os meios processuais conferidos por lei
para materialização do direito, por mais inconcebível que sejam, acabam por
influenciar nesse processo decisório, (...) impondo uma reflexão sobre as
regras que condicionam a
atuação da Fazenda Pública, que se diz sempre em favor da tutela do interesse
público, com o objetivo de auferir o equilíbrio e a harmonia dos papéis das
instituições democráticas. Daí erigir-se o princípio da razoabilidade como
termômetro da consecução desse processo.
Em suma,
resta evidente que a maximização desses condicionamentos em favor da Fazenda
Pública pode levar ao desvio do sistema, daí a necessidade de buscar a
razoabilidade das prerrogativas e identificar se elas estão velando pelo respeito
aos procedimentos como forma de preservar o Estado Democrático de Direito. Se
não houver ressonância, há que se sucumbir à hipótese de que estamos diante de
verdadeiros privilégios processuais.[30]
Não
se pode esquecer que a complexidade das relações jurídicas mantidas com a
Administração Pública vai repercutir diretamente nas demandas judiciais, de
modo que o Poder Judiciário, na contemporaneidade, assume papel preponderante
na condução das funções de propulsão desenvolvidas pelo Estado, na medida em
que suas decisões acabam por orientar a aplicabilidade das regras sob o escopo
dos direitos fundamentais. Assim, quando o Poder Judiciário parece se incomodar
com determinadas prerrogativas processuais, a exemplo do que se vislumbrou com
a execução especial contra a Fazenda Pública e, por seu turno, passa a exigir
interpretação restritiva da prerrogativa ex
vi dos limites impostos pelos direitos fundamentais, vem a tona a reflexão
do interesse público que legitima essa prerrogativa. Daí a importância do presente
estudo sob a ótica delineada, por meio do qual se vislumbrou que a supremacia
do interesse público, na roupagem atual, assume o papel fundamental para
delinear os pontos sobre os quais se legitimam as regras processuais, ditas de
exceção.
Nesse
diapasão, a conclusão do presente estudo não pode ser outra senão a de tornar
visível que o debate sobre o tema encontra-se aberto diante dos desdobramentos
que podem advir com a evolução do pensamento acerca dos fundamentos que
justificam a presença da prerrogativa processual de execução especial contra a
Fazenda Pública, na medida em que o referencial teórico do intérprete sobre
sistema político vigente é que determinará a tona para mudança de orientação
acerca do que se deve ou não entender como supremacia do interesse público.
Contudo, uma premissa é certa, a leitura deste jamais pode se afastar dos
limites conferidos pelos direitos fundamentais, tudo sob o escopo da
sistemática exigida da Carta Constitucional de nosso país.
REFERÊNCIAS
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prerrogativas processuais? Análise à luz do princípio da isonomia. Revista
Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 426, 6 set. 2004. Disponível
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Regulamenta o disposto no inciso VI do
art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993; dispõe sobre a
intervenção da União nas causas em que figurarem, como autores ou réus, entes
da administração indireta; regula os pagamentos devidos pela Fazenda Pública em
virtude de sentença judiciária; revoga a Lei nº 8.197, de 27 de junho de 1991,
e a Lei nº 9.081, de 19 de julho de 1995, e dá outras providências.
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[1] SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução
ao Direto Processual Público. Direito Processual Público: A Fazenda Pública Em
Juízo. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p.16.
[2] Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a
Administração Pública pode ser compreendida quanto aos seguintes aspectos: “a) em sentido subjetivo, formal ou orgânico, ela designa os entes que
exercem a atividade administrativa; compreende pessoas jurídicas, órgãos e agentes públicos incumbidos de exercer uma função em
que se triparte a atividade estatal: a função administrativa; b) em
sentido objetivo, material ou funcional, ela designa a
natureza da atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a Administração
Pública é a própria função
administrativa que incumbe, predominantemente, ao Poder Executivo.” DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.
68.
[3] RODRIGUES, Marco Antônio. A
Fazenda Pública no Processo Civil. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 2-3.
[4] Vale a
transcrição do excerto do voto do Ministro Marco Aurélio no RE nº 938.837 (Tema
877 da Repercussão Geral), para demonstrar a afirmação: “ - Há mais: se formos
ao artigo 100 da Constituição Federal, veremos que o sistema de precatório diz
respeito a pagamentos a serem feitos não pelos Conselhos – autarquias especiais
–, mas pelas Fazendas Públicas. Se entendermos que Conselhos integram o conceito de Fazenda Pública, vamos, até mesmo,
estender possíveis débitos existentes a ela, Fazenda Pública, no caso, a
Fazenda Pública Federal.” (grifei)
[5] Vide: STF, ACO 765 QO / RJ - RIO
DE JANEIRO, QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA, Rel. Ministro Marco
Aurélio, julgamento em 1/6/2005, DJ-e nº 211, divulgado em 6/11/2008 e
publicado em 7/11/2008.
[6] SILVA, DE PLÁCIDO. Vocabulário
Jurídico. Volume II, 3 ed. São Paulo: Editora Forense, 1973, p. 684.
[7] Art. 100 da Lei 10.406 de 10 de
janeiro de 2002; art. 833, I, da Lei 13.105 de 16 de março de 2015.
[8] BRASIL, Decreto-Lei nº 1.608 de 18
de setembro de 1939. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1608.htm>
Acesso em: 10 de junho de 2018.
[9] Art. 182 da Constituição Federal
da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934.
[10] DANTAS, Francisco Wildo Lacerda.
Execução contra a Fazenda Pública. Regime de Precatórios. 2º ed. São Paulo:
Método, 2010.
[11] BRASIL, Lei nº 5.869, de 11 de
janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869impressao.htm> Acesso em:
10 de junho de 2018.
[12] Art. 1º-B da Lei nº 9.494 de 10 de
setembro de 1997
[13] Art. 6º da Lei 9.469 de 10 de
julho de 1997
[14] DIDIER
JR., Fredie. et al. Curso de Direito Processual Civil:
Execução. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 45-46.
[15] Art. 167 da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
[16] MARINONI, Luiz Guilherme;
ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil [livro
eletrônico]: Tutela dos Direitos Mediante Procedimento Comum. 3. ed, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2017. p. 736.
[17] Art. 515 do CPC/2015
[18] Arts. 182 a 184 do CPC/2015
[19] DIDIER
JR., Fredie. et al. Curso de Direito Processual Civil:
Execução. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 676.
[20] Art. 534, §2º do CPC/2015
[21] STF, AgRg
no RE: 679164/RS, Rel. Min.
Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 11/12/2012, DJe 05/03/2013.
[22] RODRIGUES, Marco Antônio. A
Fazenda Pública no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 115-116.
[23] STJ, AgRg no REsp: 199343/SP, Rel.
Min. Castro Filho, Terceira Turma, julgado em 11/09/2001, DJ 08/10/2001; STJ, REsp: 188864/RS, Rel. Min. Franciulli Netto,
Segunda Turma, julgado em 02/08/2001, DJ
24/09/2001; STJ, REsp: 171228/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira
Turma, julgado em 25/05/1999, DJ
01/07/1999.
[24] DIDIER
JR., Fredie. et al. Curso de Direito Processual Civil:
Execução. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 977.
[25] STJ, AgRg no REsp 1253018/BA, Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 02/04/2013, DJe 16/04/2013.
[26] O expoente dessa máxima pode ser
encontrado nas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem a
supremacia do interesse público corresponde à “superioridade do interesse da
coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição até
mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.” In Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Malheiros, 2003. p.
60.
[27]MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro
Paradigmas do Direito Administrativo Pós-Moderno: legitimidade, finalidade,
eficiência, resultados. Belo
Horizonte: Fórum, 2008, pp. 34-47. Nesse livro, o Prof. Diogo expõe com maestria
a questão acerca da evolução do Estado a partir do surgimento do
constitucionalismo mundial.
[28] BINENBOJM, Gustavo. A
Constitucionalização do Direito
Administrativo no Brasil: Um Inventário de Avanços e Retrocessos. Revista
Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de
Direito Público, nº 13, março/abril/maio, 2008. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp>.
Acesso em 26/6/2018.
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