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OS NOVOS RUMOS DA REALIZAÇÃO DE TREINAMENTO E APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL COM A INSTITUIÇÃO DA GRATIFICAÇÃO POR ENCARGO DE CURSO OU CONCURSO

                             Por Maria Lúcia Miranda Alvares[1]


RESUMO: A Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso trouxe embutida em sua instituição a proposta de dinamizar a Administração Pública por meio de capacitação de servidores por profissionais integrantes de seu próprio quadro de pessoal. Mas a retribuição advinda desse encargo possui características próprias que devem ser avaliadas e sopesadas pelo órgão, na medida em que a sua concessão não pode ocorrer sob o escopo da permanência, nem está vinculada ao exercício das atribuições do cargo. No presente ensaio, a análise versa sobre a natureza jurídica da gratificação e da sua difícil absorção como vantagem de cunho estatutário.

Palavras chave: Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso. Retribuição. Natureza jurídica. Vantagem estatutária.


(i) Contextualização do tema


               A submissão ao princípio da legalidade impõe à Administração Pública a observância da normatividade que legitima não somente a contratação direta de profissionais de ensino, como a concessão de gratificações a servidores pelo exercício de docência em ambiente público, de modo que qualquer análise que envolva processos administrativos vinculados a essas áreas de atividade deve ter início com o delineamento das regras que autorizam as respectivas ações.

               Nesse sentido, cabe registrar, desde logo, que a contratação de profissionais de ensino em caráter eventual pela Administração Pública[2] está subordinada aos preceitos da Lei nº 8.666/93, que versa sobre normas de licitação e contratos em sede administrativa.

                     Essa é a regra.

                  Sob tal alicerce, alguns questionamentos surgem acerca da contratação de agente público[3] para prestação de serviço de docência pela Administração, a saber: existe viabilidade jurídica para tal proceder? Em caso positivo, qual a abrangência das regras que autorizam a remuneração desses serviços e que elementos devem ser colhidos para processar o pagamento da remuneração devida?

              A resposta ao primeiro quesito está centrada na modificação sofrida pela Lei n° 8.112, de 1990, patrocinada pela Lei n° 11.314, de 2006, que fez retornar ao mundo jurídico a intitulada Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, cuja análise é ponto de partida não somente para elucidação dos demais questionamentos postos, como para sedimentar a própria natureza jurídica da gratificação, então objeto de estudo no presente ensaio.



(ii) Da natureza jurídica da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso


                A Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, introduzida no Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União pela Medida Provisória nº 283, de 2006, posteriormente convertida na Lei nº 11.314, de 2006, encontra-se prescrita nos arts. 61, inciso IX, e 76-A da Lei nº 8.112/90, regulamentados pelo Decreto nº 6.114/2007.

                De acordo com a legislação de regência, a Gratificação é devida ao servidor pelo desempenho eventual das seguintes atividades:

"I - instrutoria em curso de formação, ou instrutoria em curso de desenvolvimento ou de treinamento para servidores, regularmente instituído no âmbito da administração pública federal;
II - banca examinadora ou e comissão para exames orais, análise curricular, correção de provas discursivas, elaboração de questões de provas ou para julgamento de recursos intentados por candidatos;
III - logística de preparação e de realização de curso, concurso público ou exame vestibular, envolvendo atividades de planejamento, coordenação, supervisão, execução e avaliação de resultado, quando tais atividades não estiverem incluídas entre as suas atribuições permanentes; e
IV - aplicação, fiscalização ou avaliação de provas de exame vestibular ou de concurso público ou supervisão dessas atividades."[4]
              
    
                Ressalta-se que essa Gratificação foi criada sob os pressupostos de relevância e urgência em face da necessidade de tornar efetivo o comando de que versa o § 2º do Art. 39 da Constituição Federal ("A União, os Estados, o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênio ou contratos entre os entes federados."), haja vista a discussão ocorrida na Ação Civil Pública nº 19998.34.000.002.302-5 ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da contratação, pela Escola Nacional da Administração Pública (ENAP), de servidores públicos para o exercício de instrutoria em cursos de formação, desenvolvimento e aperfeiçoamento. Vale a transcrição de trecho da Exposição de Motivos nº 6, MD/MRE/MT/MDIC/MP/MDS/MCT/MI/MDA/CC-PR/GSI, de 23 de fevereiro de 2006, para tornar visíveis os motivos delineadores da instituição da referida gratificação:

"2. Trata-se de um conjunto de medidas de reorganização administrativa relevante e urgente, destinado a solucionar ou amenizar problemas verificados no campo da gestão administrativa, patrimonial e de pessoal da administração pública federal, contribuindo, assim, para a maior eficiência e eficácia do Estado e a melhoria dos serviços prestados aos cidadãos.

3. Nesse sentido, propomos, na forma dos art. 1º e 2º, alterações à Lei nº 8.112, de 1990, que "Dispõe sobre o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e fundações públicas federais", com vistas à inclusão, nessa norma jurídica, da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, destinada a retribuir os servidores pelo desempenho eventual de atividades de instrutoria em cursos de formação, de desenvolvimento e de treinamento regularmente instituídos, ou, ainda, como auxiliar ou membro de banca examinadora, comissão de avaliação e comissão fiscalizadora de concurso público.
4. O art. 39, § 2º, da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, dispõe que "A União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos, constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados", o que implica a criação das condições para que estas escolas possam funcionar de forma a cumprir suas missões institucionais.
5. O Decreto nº 5.707, de 23 de fevereiro de 2006, que instituiu a Política e as Diretrizes para o Desenvolvimento de Pessoal da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, considera treinamento regularmente instituído as ações de capacitação que compreendam cursos presenciais e à distância, aprendizagem em serviço, grupos formais de estudos, intercâmbios, estágios, seminários e congressos, que contribuam para o desenvolvimento do servidor e que atendam aos interesses da administração.
6. A proposta tem caráter de urgência devido ao tumulto causado por questionamentos jurídicos, a exemplo da Ação Civil Pública nº 1998.34.00.002302-5, em relação à contratação de servidores públicos para exercer atividades de instrutoria em cursos de formação, de desenvolvimento e de treinamento regularmente instituídos, ou, ainda, como auxiliar ou membro de banca examinadora, comissão de avaliação e comissão fiscalizadora de concurso público, sob a alegação da possível incidência de acumulação ilegal de cargos e, ainda, pretensa ausência de amparo legal para os procedimentos até então adotados.
7. O impedimento do exercício das atividades de instrutoria pelos servidores públicos, objeto da presente proposta, constitui um retrocesso no cumprimento da missão das instituições autorizadas, com especial destaque para a Escola Nacional de Administração Pública - ENAP. Registre-se que os treinamentos, na sua maioria esmagadora, estão voltados para as competências específicas dos cargos no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública. Os Instrutores de tais matérias, como natural consequência, não estão disponíveis no mercado com a escala necessária. A eficiência impõe que essas instituições busquem no próprio serviço público, os instrutores, profissionais especializados, com larga experiência em conhecimentos específicos como mecanismo que viabilize atingir o objetivo do treinamento.
8. A Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso tem suas raízes assentadas nos Decretos-Leis nºs 1.341, de 22 de agosto de 1974; 1.604, de 22 de fevereiro de 1978 (art. 8º) e 1.746, de 27 de dezembro de 1979 (art. 4º), porém, não foi incluída na Lei nº 8.112, de 1990. Nesse sentido, a alteração da referida lei, tem por objeto contemplar essa omissão, compatibilizando o exercício da atividade de instrutoria com o exercício do cargo, respeitados os limites e observadas as compensações de carga horária de trabalho."  (os grifos não constam do original)

               A par da motivação apresentada, resta evidenciado que a finalidade da Gratificação por Encargos de Cursos ou Concursos é remunerar servidores públicos federais que, eventualmente, venham a atuar como docentes em cursos de capacitação no âmbito das escolas de governo, bem como pelo exercício de outras atividades vinculadas, inclusive às relativas à realização de concursos, como outrora era possibilitado por força da previsão contida no Decreto-Lei nº 1.341/74, com a redação do Decreto-lei nº 1.604, de 22.2.78.

                Nesse contexto, a primeira interpretação concebida acerca da natureza da despesa havida com a concessão da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso foi no sentido de que se tratava de despesa com “Pessoal e Encargos Sociais”, e assim deveria ser classificada. Em 2007, porém, os órgãos setoriais de orçamento e contabilidade pública – Secretaria de Orçamento Federal e Secretaria do Tesouro Nacional - passaram a enquadrar a despesa com a referida Gratificação no Grupo de Natureza de Despesa (GND) n° 3 – Outras Despesas Correntes, aduzindo para tanto que as características da gratificação assim autorizavam, quais sejam: (i) eventualidade da concessão; (ii) atividade que somente pode ser exercida sem prejuízo do desempenho do cargo pelo servidor titular, cabendo a compensação de carga horária se realizada durante o expediente; e, por fim, (iii) vedação de incorporação ao vencimento do servidor ou utilização para compor base de cálculo dos proventos de aposentadoria ou de pensões.

                 O entendimento foi objeto de análise de conformidade pelo Tribunal de Contas da União em sessão de 2 de agosto de 2011[5], oportunidade em que se debateu a questão sob os dois ângulos relativos à natureza da despesa com a Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, valendo a reprodução de parte do voto do Ministro Relator para melhor elucidação do que ali foi decidido, in verbis:

Trata-se de Auditoria de Conformidade realizada na Secretaria do Tesouro Nacional e na Secretaria de Orçamento Federal, em cumprimento à determinação constante do Acórdão 3005/2009 - Plenário, com o objetivo de avaliar a adequação da atual sistemática de enquadramento da despesa com pagamento de Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso (GECC) no grupo de "Outras Despesas Correntes", em vez de "Pessoal e Encargos Sociais", propondo, se for o caso, as medidas necessárias para correção dos procedimentos vigentes.

2. Os trabalhos de auditoria contemplaram diligências a fim de se obter informações dos órgãos centrais de orçamento e contabilidade, no intuito de subsidiar, de forma mais apurada, a avaliação do assunto.

3. Inicialmente, julgo oportuno destacar a natureza da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, prevista no inciso IX do art. 61 e no art. 76-A da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e regulamentada pelo Decreto 6.114, de 15 de maio de 2007.

4. A supracitada gratificação é devida ao servidor pelo desempenho eventual de atividades relacionadas ao treinamento e desenvolvimento dos recursos humanos em curso de formação, em curso de desenvolvimento ou cursos regularmente instituídos no âmbito da Administração Pública Federal e, ainda, em atividades de logística de preparação e de realização desses cursos, como planejamento, coordenação, supervisão, execução e avaliação de resultado, quando tais atividades não estiverem incluídas entre as suas atribuições permanentes.

5. A análise do mérito trazida pelo auditor é no sentido de considerar a Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso como despesa de pessoal. Sob a ótica financeira e orçamentária, ele utiliza duas fundamentações: a primeira, enquadra a gratificação como pagamento de natureza remuneratória; a segunda, destaca que a definição de despesa de pessoal trazida pela Lei de Responsabilidade Fiscal é meramente explicativa, abarcando, portanto, outras despesas de caráter remuneratório.

6. Por seu turno, as manifestações da Diretora e do Secretário da unidade técnica são no sentido de enquadrar como outras despesas correntes os gastos realizados a título de Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso.

7. Acompanho o posicionamento final da unidade técnica. Em que pese o caráter remuneratório da gratificação, ela não provém de cargos, funções ou empregos públicos, nem decorre de mandatos eletivos. Como bem asseverou a legislação sobre o assunto, a gratificação é paga em decorrência de atividades exercidas sem prejuízo das atribuições do cargo de que o servidor for titular, devendo, ainda, ser compensada a carga horária caso sejam desempenhadas durante a jornada de trabalho.

8. Desde 2007, a orientação orçamentária dada à referida gratificação é no sentido de classificar tal despesa no elemento 36 ("Outros Serviços de Terceiros - Pessoa Física") e subelemento 28 ("Serviço de Seleção e Treinamento"), independente de o pagamento acontecer na folha de pessoal ou fora da folha.

9. Cumpre esclarecer que a denominação "serviços de terceiros" implica pagamentos não apenas a pessoas sem vínculo funcional com o órgão, mas também a servidores, como retribuição por diversos serviços prestados, desde que de forma independente do cargo ocupado, tais como organização de cursos e concursos.

9. Assim, as classificações que antes eram realizadas no grupo de natureza da despesa relativo a pessoal e encargos sociais, nos elementos 11 ("Vencimentos e Vantagens Fixas - Pessoal Civil") e 16 ("Outras Despesas Variáveis - Pessoal Civil"), devem-se adequar às atuais orientações dos órgãos de contabilidade.

10. Em que pese a clareza da nomenclatura dos elementos 11 e 16 e ainda a existência de desdobramento específico para a Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, subelemento 39, tem-se necessária a alteração da classificação, com a finalidade de melhor retratar os gastos feitos com despesa de pessoal no âmbito da Administração Pública.

11. Os exemplos trazidos à baila no despacho da Diretora da 3ª divisão da Semag, transcritos no meu Relatório, são esclarecedores. Da mesma forma, assiste razão à Secretaria do Tesouro Nacional - STN, na qualidade de Órgão Central do Sistema de Contabilidade Federal, ao justificar a classificação da gratificação como outras despesas correntes.

12. A eventualidade dos gastos, a independência entre as atividades em relação ao cargo ocupado pelo servidor, bem como a impossibilidade de se incorporar a gratificação ao vencimento ou salário, bem como a não utilização como base de cálculo de proventos e aposentadorias e de pensões são características que diferenciam a Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso das demais.” (os grifos não constam do original)

                  Faz-se interessante dizer que os exemplos apresentados pela Diretora da 3ª Divisão da Semag, então mencionados no voto condutor da decisão acima transcrito, tiveram papel decisivo no julgamento, fazendo-se necessária a sua transcrição:

“15. A impropriedade da inclusão dos gastos com o pagamento da referida gratificação no computo da despesa de pessoal é ainda mais clara quando analisamos o caso concreto. Suponhamos que o Tribunal de Contas da União decida realizar um curso sobre licitações, caso o instrutor escolhido integre o quadro funcional do órgão, em consonância com a classificação proposta à fl. 34, os gastos concernentes deverão ser computados como de pessoal, caso contrário, não constituindo o professor servidor, seriam contabilizados como outras despesas correntes. Ou seja, apesar da natureza de despesa ser na essência a mesma nas duas situações os gastos associados obteriam classificações distintas.

16. Por seu turno, não pode ser desconsiderado o possível efeito perverso da sobredita situação. Assim, caso a despesa com pessoal esteja próxima aos limites estabelecidos pela LRF, os Poderes ou órgãos autônomos identificados no art. 20 desta Lei Complementar seriam praticamente compelidos a contratar instrutores que não fossem servidores, com um possível detrimento da qualidade do processo de capacitação.

17. Questão similar constituiria a contratação de servidor de um Poder por outro, já que os limites da despesa com pessoal são especificados por Poder e órgão no art. 20 da LRF. Assim, caso a Câmara dos Deputados contratasse um funcionário do Ministério da Fazenda para realização de um curso, os valores despendidos deveriam ser realizados a conta da dotação de pessoal, consoante à proposta apresentada à fl. 34. O servidor contratado, entretanto, não integra o quadro de pessoal da Câmara dos Deputados, não sendo razoável supor que tais dispêndios sejam suportados por sua dotação de pessoal."


                Pois bem, a decisão pela conformidade da classificação das despesas com a Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso no Grupo Outras Despesas Correntes, mormente em razão dos motivos delineados para tal proceder, trazem, certamente, desdobramentos na formalização do processo administrativo que confere ensejo ao pagamento da referida vantagem ao servidor. O primeiro deles está na natureza que se deve conferir a essa relação servidor versus Administração Pública. Sim, porque as características trazidas à baila deixaram evidenciar, de forma inequívoca, que a atividade ou serviço a ser desenvolvido pelo servidor não deve integrar o rol de atribuições de seu cargo efetivo, sendo, portanto, uma atividade alheia ao seu mister, exercida de forma espontânea e, como tal, passível de contraprestação remuneratória por parte da Administração, à semelhança de qualquer relação contratual, a demandar ilação primeira no sentido de que a natureza da relação jurídica entre partes seria de cunho contratual[6]. Essa concepção, todavia, esbarra nas miudezas dos elementos normativos vincados na Lei nº 8.112/90, que ora circundam a relação jurídica a ser desenvolvida em relação ao servidor público da União.

                É que a Lei nº 8.112/90, de forma categórica, esmiúça não somente os supostos de fato que conferem ensejo à concessão da gratificação, como estabelece os limites e critérios da retribuição devida, de modo que não se pode negar que, ao aceitar a prestação de serviço alheio às suas atribuições, o servidor o faz sob o escopo de regras dispostas unilateralmente pela Administração, de cunho vertical, ingressando em uma relação regida predominantemente por normas estatutárias, a consolidar entendimento no sentido de que a natureza da avença, de toda sorte, alberga cunho estatutário, pelo menos de maneira mais intensa, a exigir formalização adequada ao processamento da vantagem.  

                 À guisa desse roteiro, o primeiro desdobramento com repercussão processual que se haure da análise realizada pelo Tribunal de Contas da União é de que existem, pelo menos, dois tipos de relação jurídica passíveis de se concretizar com o servidor público para prestação de serviço de docência: (i) o de cunho eminentemente contratual; e (ii) o de ordem predominantemente estatutária.

                 Nas relações jurídicas de cunho eminentemente contratual estão inseridas, pelo menos, as seguintes categorias: (i) servidores públicos estaduais e municipais, vinculados a qualquer regime jurídico, que venham a contratar com a Administração Pública Federal; (ii) servidores aposentados de qualquer ente da federação[7] e, (iii) os profissionais liberais[8].

                 Os magistrados da União e os membros do Ministério Público Federal, embora não sejam destinatários da Lei nº 8.112/90, podem ter aplicação supletiva das normas relativas aos servidores públicos federais quando convidados à prestação de serviço de docência e outros cobertos pela legislação estatutária, cabendo, nesses casos, a adoção de procedimentos equivalentes ao dos servidores federais em sede de processamento da ação administrativa, sem embargo de autorização expressa na regulamentação interna do órgão beneficiário.
                    
                Nesse contexto, os servidores públicos civis da União estão sujeitos aos ditames do art. 76-A da Lei n° 8.112, de 1990, regulamentado pelo Decreto n°6.114, de 2007, formando com o órgão beneficiário relação basicamente estatutária, de forma que a aceitação da atividade de docência e de outras ligadas à logística de cursos e concursos vem agregada aos parâmetros de concessão da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, a seguir relacionadas.


(a) Das condições de exercício da atividade


                Como foi dito, a Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, por sua natureza, decorre do exercício de atividade estranha às atribuições do cargo de que é titular o servidor[9] e, como tal, é vedado o seu desempenho durante a jornada de trabalho, cabendo a compensação da carga horária aquando da ocorrência no prazo de até um ano (Art. 8º do Decreto nº 6.114, de 2007).

                Nesse sentido, a impossibilidade fática de compensação das horas trabalhadas tem o condão de vedar a designação do servidor para o exercício da atividade, haja vista que não pode a Administração submetê-lo à prestação de serviço estranho às suas funções sem a devida remuneração, sob pena de enriquecimento sem causa. É o que entende, inclusive, Ivan Barbosa Rigolin, a saber:

"O § 2º prevê que somente poderá ser paga a gratificação a que se refere o artigo se inexistir prejuízo das atribuições regulares do prestador. Caso não haja possibilidade de acumular durante o mesmo horário o desempenho de ambas as atribuições - o que é de resto mais do que compreensível -, então precisará haver compensação da carga horária, na forma prevista no § 4º, do art. 98, a ser comentado a seu tempo.

Isto faz concluir que, se por algum motivo não puder haver nem acumulação horária nem compensação de carga horária do cargo, então simplesmente não poderá o servidor ser designado para as atribuições a que se refere este artigo, ou estaria ocorrendo enriquecimento sem causa da Administração, e designação ao servidor de trabalho não remunerado, o que a L. 8.112 expressamente proíbe, no seu art. 4º[10]."  (o grifo não consta do original)


               Sobre o assunto, o Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão, por meio de Nota Informativa de seus órgãos técnicos, ofereceu o seguinte entendimento acerca do tema:

"f) Servidor que ministrar curso no horário de trabalho e que queira abrir mão da gratificação por encargo de curso ou concurso terá que compensar as horas não trabalhadas?

Resposta: O servidor que exercer atividades ensejadoras do pagamento da gratificação em comento não poderá abdicar de sua percepção, tendo em vista o disposto no art. 4º da Lei nº 8.112, de 1990, devendo efetuar a compensação de horas, caso as atividades tenham sido realizadas no seu horário de trabalho.[11]


               Nesses termos, é condição para o desempenho de atividade de docência pelo servidor civil da União para o fim do disposto no art. 76-A da Lei n° 8.112, de 1990, a existência de compatibilidade de horário com o exercício do cargo de que é titular ou, alternativamente, a viabilidade de compensação da carga horária despendida para tal finalidade durante o horário de expediente pelo prazo de até um ano[12].

Outra condição prescrita no Decreto n°6.114, de 2007, diz respeito ao limite máximo de horas anuais de trabalho nas atividades que conferem ensejo ao pagamento da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso. De acordo com o art. 6° do mencionado Decreto, o servidor não poderá ser retribuído pela execução de atividades que extrapolem o equivalente a cento e vinte horas de trabalho anuais, salvo situação excepcional devidamente autorizada. Assim é que, o servidor deverá declarar previamente à aceitação da atividade o total das horas trabalhadas, no ano em curso, como condição para a concessão da Gratificação.

                No mais, é preciso ressaltar que a Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso não é devida aos servidores por treinamento em serviço, assim considerado aqueles vinculados, exclusivamente, “a rotinas de trabalho, serviços, procedimentos ou atividades da unidade de lotação do servidor”,[13] ou para disseminação de conteúdo relativo às competências das unidades organizacionais.[14] E o que isso significa? Significa que o servidor não terá jus à percepção da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso nas hipóteses em que o evento tiver por foco divulgar, dar conhecimento, disseminar conteúdo sobre as competências das unidades organizacionais, ou melhor, “das atribuições do órgão/entidade, suas diretrizes, seu regimento interno; a descrição de sua missão, cargos, funções, estrutura, organograma; a posição hierárquica de cada unidade organizacional, suas nomenclaturas/siglas, seus fluxogramas, ou melhor, das atividades rotineiras desenvolvidas, tais como, recursos humanos, logística, áreas técnicas/operacionais ou gerais[15]”  
               Em suma, o servidor terá direito à Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso quando efetivamente realizar atividade de treinamento e elaborar eventos de capacitação, incluindo outras atividades correlatas, então previstas no art. 76-A, da Lei nº 8.112/90, desde que estas não estejam inseridas no bojo de suas atribuições permanentes.


(b) Do valor


                O valor a ser pago, a título de Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, deve corresponder à carga horária despendida com a atividade desenvolvida ou equivalente ao serviço prestado, tendo por base o maior vencimento básico da Administração Pública Federal, divulgado pelo Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão (art. 3º, § 1º, do Decreto nº 6.114/2007). Sobre essa Gratificação não deverá incidir desconto a título de contribuição previdenciária por efeito da isenção contida no art. 4º, § 1º, inciso XVII, da Lei nº 10.887/2004.

                A Lei n° 8.112, de 1990, traz os elementos básicos para composição dos valores em razão das atividades, cujos detalhes são previstos no Decreto n° 6.114/2007 que, por seu turno, dispõe que caberá aos órgãos e entidades executoras “elaborar tabela da Gratificação, observadas as disposições e critérios estabelecidos nos arts. 3° e 4°;”. E, por sua vez, o Anexo I do Decreto n° 6.114, de 2007, traz as tabelas dos percentuais máximos da Gratificação.

                Na maioria dos órgãos pesquisados, o valor da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso segue os parâmetros fixados em lei. No âmbito do Poder Judiciário, por exemplo, existe certa uniformidade na fixação das tabelas, que basicamente equivalem às adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.


(c) Do Processamento 


                 A concessão da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso deve ser processada pelos órgãos e entes que requisitam a atividade de cursos ou concursos, que ora ficam incumbidos de formalizar o processo sob o roteiro da gestão interna, sem embargo da juntada da documentação necessária à comprovação dos requisitos exigidos na legislação de regência[16].

                A forma de tramitação do processo e demais ações inerentes à concessão da Gratificação podem ser objeto de regulamentação específica.

              A par dessas diretrizes é que muitos órgãos passaram a regulamentar, sob o enredo do Decreto nº 6.114, de 15 de maio de 2007, a mencionada Gratificação, conforme se pode vislumbrar, dentre outros, pelos atos normativos alinhados: a)Supremo Tribunal Federal – Instrução Normativa nº 114, de 26.10.2010; b)Conselho Nacional de Justiça - Resolução nº 20, de 6.7.2009; c) Conselho da Justiça Federal - Resolução nº 40, de 19.12.2008; d) Tribunal Superior do Trabalho - Ato nº 733, de 4.12.2007, alterado pelo Ato nº 247, de 28 de abril de 2009; e) Portaria nº 323, de 3.7.2008, da Secretaria Executiva do Ministério do Planejamento, Orçamento e gestão.

                A leitura dos regulamentos acima relacionados deixa evidenciar a sua consonância com os termos do Decreto nº 6.114/2007, base para concessão e fixação dos valores a serem adotados, tendo como destinatários os servidores públicos federais, com previsão de aplicação supletiva das regras aos demais agentes, detentores de cargos públicos federais, quando convidados.

                Quanto aos demais profissionais de ensino, a relação jurídica contratual deve observar os ditames da Lei n° 8.666/93, sem embargo do estabelecimento de critérios regulamentares para tal finalidade.


(iii) Conclusão

                    
                     A Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso, no âmbito da Administração Pública Federal, não obstante tenha assento na Lei nº 8.112/90, não é tida como uma vantagem devida ao servidor por conta do exercício do cargo público, a exemplo das demais vantagens remuneratórias que se encontram no texto estatutário.

                É uma vantagem destinada aos servidores públicos federais que, por força de exercício de atividade de docência e outras correlacionadas, estranhas ao seu mister, é concedida sob a roupagem de um direito extravagante ao exercício do cargo público, mas com ele intrinsecamente relacionado.

                Cuida-se, portanto, de uma parcela remuneratória por serviços prestados pelo servidor, de fundo contratual, regulada por regras predominantemente estatutárias, que condicionam a sua percepção ao exercício de cargo público na esfera federal.




[1]  Pós-Graduada em Direito Administrativo/UFPA, autora do livro Regime Próprio de Previdência Social. Editora ND, e colaboradora de revistas jurídicas na área do Direito Administrativo. Palestrante, instrutora e conteudista de cursos na área do Direito Administrativo, autora do Blog Direito Público em Rede. Analista Judiciária junto ao TRT 8ª Região, onde exerce o cargo de Assessora Jurídico-Administrativa. 
[2] Que não se confunde com a contratação por tempo determinado de que trata o inciso IX  do art. 37 da CF.
[3]    Nesse caso se utiliza a abrangência do termo agente público para agasalhar não somente os servidores públicos, como os demais membros de Poder, geralmente convidados para proferir cursos e palestras em âmbito administrativo.
[4]    Art. 2º do Decreto nº 6.114, de 2007.
[5]    Objeto do Acórdão n°5459/2011 – Segunda Câmara
[6] É que, diante das características postas, a relação jurídica a ser devolvida parece retirar um dos vigamentos da teoria estatutária da função, cuja relação é centrada da vontade da lei. Ademais, na hipótese, há que se requisitar, também, a vontade do agente para tal proceder.
[7]    v. Nota Informativa n° 17/2007/DENOP/SRH/MP
[8]    No caso dos agentes públicos sujeitos à regra de acumulação de cargos, restou evidenciado no Acórdão TCU n°5459/2011 - 2ª Câmara que a prestação do serviço de docência em sede administrativa pode não decorrer de cargo, emprego ou função pública e, como tal, o exercício da atividade é perfeitamente legítimo sob a ótica da contratação de serviço eventual de treinamento e capacitação, caso em que não há que se falar em  acumulação de cargos.
[9]    Não é devida a concessão da gratificação a servidor pelo desempenho das atividades relativas a cursos e concursos cujas tarefas já integram o elenco de atribuições do seu cargo efetivo.
[10]   RIGOLIN, Ivan Barbosa. Comentários ao regime único dos servidores públicos civis. 6. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva,2010,p.192.
[11] Nota Informativa nº 270/2011/CGNOR/DENOP/SRH/MP.
[12]   A Portaria –ISC n° 7, de 18 de março de 2011, do Instituto Serzedelo Corrêa, do TCU, dispõe no art. 8°acerca de hipóteses de vedação da concessão da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso dentre as quais se encontra a de realização das atividades de docência durante o horário de expediente, sem compensação.  Nesse caso, fica evidenciado que, em face do princípio que proíbe o enriquecimento sem causa da Administração Pública,  o serviço prestado impõe remuneração, cabendo a necessária compensação da carga horária se o servidor realizou as tarefas durante o expediente.  Na verdade, o dispositivo torna visível a proibição de designação de servidor para atividade alheia ao seu mister diante da impossibilidade de compensação da carga horária despendida com a atividade durante o expediente. Esta, aliás, a interpretação que se extrai do próprio Acórdão 5459/2011 - 2ª Câmara do TCU, cuja cópia foi anexada aos autos.
[13] v. Art. 15 da Resolução 114, de 2010, do STF.
[14] É importante deixar visível essas situações porque não é a lotação do servidor que veda a percepção da gratificação, mas a atividade a qual se vincula. Ex: não é vedada a percepção de gratificação em favor de um servidor lotado no/na Departamento/Seção/Coordenação de normas sobre inativos e pensionistas por prestação de serviço de docência sobre as regras do Regime de Previdência do Servidor Público. Entretanto, ser-lhe-á vedada a percepção da gratificação se o curso versar sobre as rotinas de seu departamento, ou sobre rotinas de serviço vinculadas a sua seção/coordenação. Outro exemplo: servidor lotado na área de tecnologia da informação, que terá que divulgar nova ferramenta de tecnologia da informação adquirida pelo órgão ou por ele desenvolvida, o treinamento dos servidores, nessa hipótese, será considerado treinamento em serviço e, como tal, não terá o servidor direito à percepção da gratificação. 
[15] NOTA TÉCNICA Nº 767/2009/COGES/DENOP/SRH/MP
[16]   Consta do Acórdão TCU n° 3864/2011 - 2ª Câmara o seguinte registro de irregularidade apontada pela CGU : “4.8.1. A CGU constatou a realização de pagamentos de Gratificação por encargo de curso ou concurso sem que fossem preenchidos e documentados nos autos dos respectivos processos os requisitos exigidos pelo Decreto n° 6.114/2007, que regulamenta o pagamento da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso de que trata o art. 76-A da Lei n° 8.112/1990.” (o grifo não consta do original)

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